Leonardo Candido

A MORTE PARA OS ANTIGOS EGÍPCIOS NO ENSINO DE HISTÓRIA

Leonardo Candido Batista



A imagem mais conhecida, embora não a única do julgamento dos mortos, encontra-se no papiro de Hunefer. John Baines e Jaromír Málek (1996, p.218) descrevem a imagem com seu tema central sendo o coração do morto numa balança com Maat, a concepção egípcia da ordem correta, representada quase sempre como um hieróglifo, ou por uma pena de avestruz, ou por uma figura da personificação da Maat, deusa com uma pena metida numa fita à volta da cabeleira. Thot, o deus-escriba da sabedoria e da justiça, efetua a passagem diante de Osíris, que a preside a uma sala de julgamento com 42 juízes. Se o coração e Maat estão em equilíbrio, o teste é favorável e o morto (Hunefer) é apresentado a Osíris em trinfo. O julgamento é segundo Maat, ou seja, a conduta correta em vida. Em suma a figura demostra à esquerda Anúbis levando o morto, sendo que o mesmo verifica o equilíbrio da balança, enquanto Thot registra o resultado e uma figura conhecido como a "devorado" está à espera de comer o morto caso esse tão esteja em equilíbrio com a Maat. Hórus apresenta o morto a Osíris, cujos trono está colocado no "lago de natrão", do qual surge a lótus com os quatro filhos de Hórus; por trás encontra-se Isis e Néftis. Num pequeno registro superior o defunto venera um grupo e divindades compreendendo a enéade heliopolitana, sem Seth.

Já as características são bem apresentadas por Ciro Flamarion Cardoso (1992, p. 99), apontando três grandes características da arte canônica egípcia. A primeira é o fato de evitar o uso da perspectiva. Os egípcios desejavam figuras que representassem os objetos e seres vivos como tais egípcios (ou alguns deles, aqueles que estabeleceram e mantiveram em vigor as regras da representação) achavam que eram. A segunda grande característica é o uso da variação no tamanho das figuras para indicar hierarquia - superioridade ou inferioridade relativa nas situações respectivas, sociais ou de outra natureza: o rei era superior a qualquer outro ser humano, sendo que tais hierarquias podem ser representadas graficamente por figuras de tamanhos diferentes. E a terceira característica seria sua unidade profunda com a escrita monumental daquela civilização (hieroglífica). Como a escrita usava também figuras, os limites entre arte representativa e escrita não eram estritos.

Outra consequência da unidade básica da escrita e da arte é que eu muitos casos, os gestos das figuras humanas e divinas podem ser lidos, nas representações pictóricas ou nos relevos, como se fossem hieroglíficos. A arte para os antigos egípcios era utilitária. Acreditava-se que a figura de certo modo era aquilo que representava, podendo então suscitar magicamente a realidade. O artista, percebido como um artesão entre muitos outros, participava em seu próprio nível, segundo a ideologia oficial, da tarefa central de toda a sociedade egípcia: manter a ordem do cosmo, impedindo que este fosse engolido pelas forças do caos. Ao fazê-lo em forma adequada, no interior do sistema fortemente controlado das representações iconográficas, poderia no mínimo obter um status e uma remuneração médios em escala social.

Muitos discursos se apropriaram do antigo Egito, com visões místicas, sendo muito romantizadas pelos filmes hollywoodianos, com múmias e suas implacáveis maldições, ou idealizadas com atores brancos nos papeis de faraós e outros personagens dessa civilização. Essa influência do Egito na sociedade ocidental está junto com o "Orientalismo" que tanto influenciou o discurso eurocêntrico, como Edward Said (2003, p. 34) comenta o Orientalismo depende dessa posição de superioridade flexível, que põe o ocidental em toda uma série de possíveis relações com Oriente sem jamais lhe tirar o relativo domínio.

Esse estereótipo criado pela mídia, ajudou a fazer a imagem do Egito como uma civilização fúnebre, principalmente pelas diversas múmias encontras e mostradas por fotos e filmes. Sempre que o mundo egípcio é foco de um assunto, não têm como fugir das imagens das pirâmides e de todos os cuidados que os mortos tinham. É claro que os egípcios davam uma atenção especial para a morte, como destaca Sérgio Donadoni (1994, p.217) eles enchiam de papeis e parede com textos religiosos relativos aos mortos, o que permitiu conhecer, de uma forma articulada e direta, as concepções míticas, os rituais, as interpretações autênticas, conhecimento que não possuímos em relação ao resto do mundo antigo.
Mas essa característica não pode ser tomada ao pé da letra, ela tem que ser contextualizada com as concepções míticas existentes dentro dessa sociedade, como explica Geoffrey T. Martin (1990, p.94) embora amplamente funérea e religiosa, em parte por acidente ou sobrevivência, a arte do antigo Egito está longe de ser funérea. Pelo contrário, é uma evocação alegre da vida e sua continuação para a eternidade. Muitas das informações que temos sobre a vida fúnebre do antigo Egito está contida em uma coletânea que se chama Livro dos Mortos, que seria uma coletânea de vários textos, como desde os textos das pirâmides que datam do Antigo Reino por volta de 2375-2150 a.C (data dos textos das pirâmides), aparecendo pela primeira vez como o rei Unis da V dinastia. Esses textos tinham funções tanto mágicas (focadas na palavra oral e escrita, tendo um efeito performativa, sendo que ao pronuncia-la ou coloca-la, por escrito, se torne concreto) quanto rituais, (de textos que eram recitados em funerais dos reis, evidenciando as continuas referências e oferendas). Antonio J. Morales (2015, p. 139) argumenta que o principal fator que explica desse corpus e sua notória transmissão é a heterogeneidade de sua constituição. Cada uma das seleções verificadas do Textos das Pirâmides representam uma sucessão de grupos, adaptada as práticas e crenças da tradição que se desejava refletir. Consequentemente no processo de transmissão do corpus, os sacerdotes e escribas encarregados da composição de novos programas podiam especular com os textos, e enfatizar diversas doutrinas teológicas, crenças populares e, sobretudo, tradições rituais. Os textos dos sarcófagos também estavam presentes no que se tornou o Livro dos Mortos. Sua compilação, embora não em um único livro com suas imagens e textos com certeza ajudaram a difundir as ideias fantásticas de maldições e outras atribuições melancólicas e desgraçadas. Como destaca Wallis Budge (2008, p. 55) o título Livro dos Mortos, pois ele não possui os conteúdos em massa dos textos religiosos , hinos, ladainhas e etc, na qual agora é melhor conhecido por esse nome, e não por qualquer que seja a representação do seu nome no antigo Egito REU NU PERT EM HRU "Capítulos do surgimento por dia", o nome Livro dos mortos, no entanto é mais satisfatório que o de "Ritual dos mortos", somente pequenas sessões podem ser descritas certamente como de caráter ritual, enquanto a coleção por completa das composições certamente se referem ao morto e o que acontece depois da tumba.
Essas imagens ajudaram a propagar muito dessa visão estereotipa do Egito, ela ainda existe, mas os egípcios não viam não pensavam sua vida toda pensando no dia da morte, como destaca Donadoni (1994, p.218) uma civilização tão obstinadamente atenta aos precedentes de todas as suas manifestações como é a civilização egípcia está particularmente apta a continuidade do tempo e também a representação - mesmo apenas como memória daquilo que pode parecer terminado. Barry Kemp (1996, p.9) fala que que a principal dificuldade no estudo do antigo pensamento egípcio, são devidas as circunstâncias, já que enquanto um processo vivo, foi aniquilada por diversas mudanças culturais de grande magnitude, como a incorporação do Egito no mundo helenístico, a conversão ao cristianismo e a chegada do Islã, que conduziram a quase perda total ou destruição de sua literatura. Boa parte do que se podia capturar de forma associado por meio de símbolos ou associações de palavras desapareceram.

Assim vemos que a vida funerária no Egito antigo era uma continuidade da vida mundana, além de comida era também enterrado, móveis e outras coisas luxuosas que faziam parte da vida do morto, inclusive representações em miniatura de seus funcionários chamados shabits. Como destaca Roger Chartier (2002, p.170) a imagem opera a substituições exterior onde uma força aparece apenas para aniquilar outra força em luta de morte, signos da força ou, antes, sinais e indícios que só precisam ser vistos, constatados, mostrados e depois contados e recitados para que se acredite na força de que são os efeitos.

Para Dominique Valbelle (1990, p.64) a decoração dessas capelas construídas ou rupestres, quando não apresentam cenas de oferendas, nem desenvolvem ritos e fórmulas funerárias, especifica, conforme as épocas, apenas por meio do texto, ou também da imagem comentada, as propriedades do defunto e as atividades que ai se desenvolvem, os episódios notáveis de sua carreira e algumas manifestações de sua autoridade, dos acontecimentos a que assistiu ou nas quais participou, os membros de sua família, os amigos, os colegas, os superiores e os subordinados. Assim, o túmulo, para além de proclamar, pelas suas dimensões, pela qualidade dos relevos e pelo brilho das pinturas, a riqueza do proprietário, ainda recorda, até o ínfimo pormenor, a fortuna que permitiu sua existência.


Referências

BAINES, John e MALÉK JAROMIR. O Mundo Egípcio: Deuses, Templos e Faraós Vol II.
Madrid: Edições Del Prado, 1996.
BUDGE, Wallis. The Egyptian Book of the Dead. New York: Penguin Books, 2008.
CARDOSO, Ciro Flamarion. Arte Canônica Egípcia: Regras Básicas para Relevos e Desenhos, 1992.
CHARTIER, Roger. À Beira da Falésia: A História Entre Certezas e Inquietudes. Porto Alegre: Editora da Universidade UFRGS, 2002.
DONADONI, Sergio. O Morto. In: Donadoni (org.). O Homem Egípcio. Lisboa: Editorial Presença, 1994.
FAZZINI A., Richard. El Egipto de los Faraones. El arte faraónica y la imaginación moderna. El Correo, Septiembre 1988.
HARTOG, François. Memórias de Ulisses: Narrativas sobre a fronteira na Grécia antiga. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2004.
KEMP, Berry. El Antiguo Egipto: Anatomía de una civilización. Barcelona: Crítica, 1992.
MARTIN T, Geoffrey. FUNERÁRIA, MAS NÃO FUNÉREA: reflexões sobre a arte Egípcia da XVIII dinastia. In: Bakos, Axt, Pozzer, Costa Silva, Witczac e Oliveira (Orgs.). Anais do IV Simpósio de História Antiga e I Ciclo Internacional de Conferências Em História Antiga Oriental. 1990
MORALES, J, Morales. El ritual em los Textos de las Pirámides: sintaxis, texto y significado. Revista de Ciencias de las Religiones, 2015, 20, 137-164.
SAID W, Edward. Orientalismo: O Oriente como invenção do Ocidente. São Paulo: Companhia das Letras, 2003.
VALBELLE, Dominique. A Vida no Antigo Egipto. Mira-Sintra: Coleção Saber, 1991.


14 comentários:

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  2. Boa tarde. Estudando um pouco sobre o Egito e tendo adquirido o Livro dos Mortos, achei este não esclarecedor, talvez não o tenha entendido, mas ver acena do julgamento no Papiro de Hunefer foi bem esclarecedor do quão importante era para os egípcios este ritual de passagem para a outra vida que não seria triste como relatou e sim ou novo patamar e mais elevado para continuar a sua vida. Seria correto afirmar que esta tradição, ou melhor , crença, tenha se perdido pela introdução de outras crenças sem contar que pode ter contribuído a a segregação da classe menos favorecida para obterem o tão desejado Papiro para indicar o caminho para outra vida, que sabe-se que custava uma pequena fortuna e que talvez as invasões aos tumulos tenham desincentivando e posto em cheque esta crença?
    Ione Schmidt, estudante de Licenciatura em História a distncia, Furg .
    Sapiranga – RS B- Brasil

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    1. Ione, não acho que as crenças e certos ritos foram perdidos, elas continuaram e se adaptaram muito bem a incursões de outros povos, como do Oriente Próximo e helênicos. A religião egípcia, tinha por característica não revelar a verdadeira identidade dos deuses, como por exemplo, o seu nome ou sua verdadeira forma, havendo diversas metamorfoses durante sua história, só vindo a acabar com conquista Árabe. Até as dinastias helenísticas prestigiaram e mantiveram certos ritos, assim como houve alguns sincretismos de deuses, como Hermes e Thoth, então esses ritos persistiram por muito tempo. E o que podemos chamar de livro dos mortos, Ione, é uma compilação de diversos ritos vindo desde os textos das pirâmides da V dinastia, que estavam somente vinculados ao culto real. Depois apareceram os textos dos sarcófagos. e por último essa prática se espalhou a quem pudesse ter acesso ao tão precioso papiro.

      Leonardo Candido Batista

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  3. Boa tarde,
    Muito interessante sua abordagem e seu tema. Eu vejo em diversos livros de história destinadas aos alunos uma visão diferente sobre o tema, muita das vezes acaba causando uma confusão. Você já se deparou com erros em livros com relação ao tema? E se for afirmativa a resposta, como contornou?
    Marlon B. Ferreira

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    1. Caro Marlon, esse problema é corriqueiro dos nossos frágeis materiais didáticos, infelizmente não existe uma abordagem mais série sobre o assunto, levando a esses mesmos erros. Por essa visão errônea eu resolvi escrever esse texto, e mostrar uma abordagem atual do tema.

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    2. Muito obrigado
      Marlon B Ferreira

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  4. Gostei muito da forma como abordou o tema. Recentemente adquiri o livro dos mortos pois pretendo trabalhar como tema de tcc a legitimação social da mulher no cargo de Faraó, mas, sinto grande dificuldade pois minha faculdade não possui um especialista em História Antiga, aproveitando o ensejo não seria uma deficiência na área de ensino da antiguidade nas instituições superiores essa representação errônea do mundo antigo egípcio nos livros didáticos?

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    1. Com toda certeza, Danilo! Infelizmente ainda carecemos de pesquisa em Antiga no Brasil, apesar de esse quadro ter mudado um pouco nos últimos anos, mas ainda o especialista nessa área é visto como uma pessoa que trabalha com "excentricidades". Outro problema que você vai se deparar é a falta de bibliografia, sendo necessário uma segunda língua, já que existem poucas coisas em português, principalmente na minha área que é Oriente Próximo, mas em Egito creio que você consiga boas referências em nosso vernáculo... Boa Sorte!!!!!

      Leonardo Candido Batista Mestrando em História

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  5. Olá a todos! Como a colega Ione comentou, gostaria de saber mais sobre o Livro dos Mortos. E como foi comentado no último parágrafo,a vida da pessoa enterrada nas capelas fúnebres era registrada com rupestres e também através de escritas.Assim, gostaria de saber se existem algum registro original ainda hoje e quais os especialistas em História do Egito no Brasil?
    Adriana E. Castro Ferst

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    1. Adriana, o que chamamos de Livro dos Mortos é mais uma coletânea que de vários textos, como desde os textos das pirâmides que datam do Antigo Reino por volta de 2375-2150 a.C (data dos textos das pirâmides), aparecendo pela primeira vez como o rei Unis da V dinastia. Esses textos tinham funções tanto mágicas (focadas na palavra oral e escrita, tendo um efeito performativa, sendo que ao pronuncia-la ou coloca-la, por escrito, se torne concreto) quanto rituais, (de textos que eram recitados em funerais dos reis, evidenciando as continuas referências e oferendas). Seu nome no antigo Egito REU NU PERT EM HRU “Capítulos do surgimento por dia”, o nome Livro dos mortos, no entanto é mais satisfatório que o de “Ritual dos mortos”, somente pequenas sessões podem ser descritas certamente como de caráter ritual, enquanto a coleção por completa das composições certamente se referem ao morto e o que acontece depois da tumba. O registro original mais conhecido é o papiro de Hunefer que está no Museu Britânico. Existem alguns especialistas em Egito no Brasil, a de mais destaque é a professora Margaret Marchiori Bakos hoje no programa de pós- graduação da Universidade Estadual de Londrina.

      Leonardo Candido Batista

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  6. Adriana, o que chamamos de Livro dos Mortos é mais uma coletânea que de vários textos, como desde os textos das pirâmides que datam do Antigo Reino por volta de 2375-2150 a.C (data dos textos das pirâmides), aparecendo pela primeira vez como o rei Unis da V dinastia. Esses textos tinham funções tanto mágicas (focadas na palavra oral e escrita, tendo um efeito performativa, sendo que ao pronuncia-la ou coloca-la, por escrito, se torne concreto) quanto rituais, (de textos que eram recitados em funerais dos reis, evidenciando as continuas referências e oferendas). Seu nome no antigo Egito REU NU PERT EM HRU “Capítulos do surgimento por dia”, o nome Livro dos mortos, no entanto é mais satisfatório que o de “Ritual dos mortos”, somente pequenas sessões podem ser descritas certamente como de caráter ritual, enquanto a coleção por completa das composições certamente se referem ao morto e o que acontece depois da tumba. O registro original mais conhecido é o papiro de Hunefer que está no Museu Britânico. Existem alguns especialistas em Egito no Brasil, a de mais destaque é a professora Margaret Marchiori Bakos hoje no programa de pós- graduação da Universidade Estadual de Londrina.

    Leonardo Candido Batista

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  7. A citação no título, ensino de história seria em qualquer serie? E como trabalhar a população pobre nos ritos dos mortos em uma possível discussão sociológica?
    Gabriel I. Covalchuk

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    1. Eu acho que uma abordagem desse tipo seria muito legal no ensino médio, porque é complicado trabalhar certas coisas da antiguidade no fundamental, o texto ainda é um debate mais teórico e teríamos que achar alguma forma de transpor didaticamente. Gabriel, creio que essas discussões teriam que ser feitas aos poucos, e com muito cuidado para quebrar certos esteriótipos que o Orientalismo e até mesmo a mídia coloca sobre o Egito antigo, que é um discurso muito mais acessível que o da acadêmia.

      Leonardo Candido Batista

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